sexta-feira, 5 de agosto de 2011

SOBRE ILUSIONISMO



Marcio Callegaro

Acabei de ler e avaliar o roteiro de um curta-metragem intitulado Ilusionismo. Diz o iDicionário Aulete que ilusionismo é a “arte e prática de criar algo ilusório por meio de truques”.
Sofisticado o roteiro, não é algo que se leia de forma rápida ou que apenas uma primeira leitura, talvez uma segunda, possa lhe abranger o sentido ou a real estrutura que dá suporte à narrativa.
É um curta voltado para a Arte mesmo, não tem jeito de amenizar a conversa. Logo, pode a roteirista preparar-se espiritualmente, dificilmente haverá aceitação ou compreensão de sua narrativa pelo público comum, acostumado a apelos imediatos. Em um mundo fast food, de capitalismo triunfante — a tal modernidade líquida que tanto nos fala Zigmunt Bauman — estará o público, em geral, preparado para receber esse tipo de mensagem?
Aí é que se encontra o cerne da questão, e o perigo da análise incipiente: Ilusionismo, como roteiro ou como filmagem, não é um projeto pensando para fazer concessões, muito pelo contrário, é uma narrativa que, de forma inequívoca, espelha o que se passa na alma e no cérebro dessa roteirista que debuta oficialmente como cineasta.
Roteiro é ideia primeira, concepção, porém, o que dará o tom final do curta será a sua produção, isto é, filmagem e edição. Ilusionismo depende de uma boa produção, pois sua proposta, como já disse, é sofisticada, então, terá de haver uma produção à altura para que possa o espectador melhor compreender seu sentido, e não se alienar ao que assiste na tela. Outra dificuldade para o espectador é de que a projeção das imagens é feita "uma" única vez (para se ter essa primeira impressão), enquanto eu posso me dar o luxo de ler e voltar no texto quantas vezes sentir necessário.
Quanto ao roteiro em si, vejo o filme como um jogo de espelhos, isto é, peças que se posicionam uma em frente da outra, portanto, imagem que se projeta no espelho à sua frente, que rebate no outro, que se projeta novamente... e assim vai, sucessivamente. Faz questionar (e muito) "o que realidade, o que é ficção?".
 O mais irônico, neste caso, é que tudo é ficção. Ou seria realidade o protagonista Danilo?, ou a bailarina? Ocorre que também por esses somos surpreendidos, pois a própria bailarina interpreta apenas um papel (no estúdio, diretor corta a ação). Porém, esta se encontra na realidade (?) de Danilo junto à praia, e também em seu computador.
 Em contrapartida, o protagonista Danilo, este sim, parece inserido em um mundo real: existe um quarto bastante factível (roupas e objetos jogados ao chão), existe a bronca do pai, e certa alienação do filho em relação ao mundo. Todavia, o próprio comportamento do protagonista começa a nos causar estranheza: sai de casa e vai até a praia arrastando pelas ruas seu headphone, ainda dependurado junto ao ouvido. E a areia fina que cai das mãos de Danilo como caísse das âmbulas de uma ampulheta? Afinal, o que é o tempo?
A bailarina se afasta, é envolvida pelas águas, desaparece. Mais uma vez, o que é realidade, o que ficção? E o mais interessante nisso tudo é que estamos diante de um filme, portanto, imagens projetadas na tela, pura ficção, ilusão para os sentidos. Representação da realidade (o homem é o único ser que simboliza), apenas isso, e nada mais do que isso.
Daí a observação inicial quanto ao jogo de espelhos. Qual é a imagem original? O que é representação? A câmera em POV, também, implica outra proposição de realidade, agora, a pálpebra que pisca.
Quem conhece a autora, ou já conversou com ela mais a fundo sobre cinema, sabe de sua queda pelas matrioskas, as bonecas russas: uma realidade por dentro da outra, em camadas. No fundo, creio que essa seria mesmo a melhor definição para o curta.
O que mais apreciei, porém, foi o modo como a roteirista trabalhou a diferença entre fabulação e trama, ou seja, desconfio que andou estudando sobre estruturas narrativas, e de que fez bom proveito desse conhecimento — existe no roteiro um trabalho significativo com a trama, não há desenvolvimento linear, muito pelo contrário. Pura elaboração, detalhes pensados com antecedência. Não se engane, nada é por acaso em Ilusionismo, ou será mais um a ser iludido pelos truques armados ao longo da narrativa.
Tudo pela autora foi pensado, tintim por tintim, e apesar de que o filme possa parecer um tanto alucinógeno para o espectador, nada no roteiro foi acidental, mas, contrário a isso, muito bem elaborado.
Penso que era o essencial a comentar.
Morre uma aspirante, nasce uma cineasta.
Aguardo o convite para a estreia.

Márcio Callegaro é autor de prosa, poesia, teatro, histórias em quadrinhos e letras de músicas. Conheça mais de seu trabalho em entrevista ao Cinezen.

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